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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Leon Denis critica o niilismo de Nietzsche













Trechos de obras em que Léon Denis critica a visão de mundo de Nietzsche 


          "Quanto à Alemanha, não temos elogios para as idéias que, há mais de um século, nos vêm deste lado. Seja seu militarismo brutal e devastador, ou o materialismo grosseiro de Büchner e Moleschott, ou ainda aquelas mais refinadas, porém não menos egoístas de Nietzsche (...); tudo isto desprovido de generosidade e de grandeza e não leva senão à investida, ao esmagamento de uns pelos outros."
(Léon Denis. Socialismo e Espiritismo, 1924)


*     *     *


          "O ilustre professor Raoul Pictet assinala esse estado de espírito na introdução de sua última obra sobre as ciências psíquicas. Ele fala do efeito desastroso produzido pelas teorias materialistas sobre a mentalidade de seus alunos e conclui assim:

Esses pobres jovens admitem que tudo o que se passa no mundo é efeito necessário e fatal de condições primárias, em que a vontade não intervém. Consideram que sua própria existência é, forçosamente, joguete da fatalidade inevitável, à qual estão ligados, de pés e mãos atados. Esses jovens param de lutar logo que encontram as primeiras dificuldades. Não acreditam mais em si mesmos. Tornam-se túmulos vivos, onde guardam, confusamente, suas esperanças, seus esforços, seus desejos, fossa comum de tudo o que lhes fez bater o coração até o dia do envenenamento. Tenho visto esses cadáveres diante de suas carteiras e no laboratório e têm-me causado pena.

          Tudo isso não é somente aplicável a uma parte de nossa juventude, mas também a muitos homens de nosso tempo e de nossa geração, nos quais podemos constatar um sintoma de cansaço moral e de abatimento. F. Myers também o reconhece: “Há como que uma inquietude, um descontentamento, uma falta de confiança no verdadeiro valor da vida. O pessimismo é a doença moral de nosso tempo”. As teorias de além-Reno, as doutrinas de Nietzsche, de Schopenhauer, Haeckel, dentre outros, muito contribuíram para desenvolver esse estado de coisas. Sua influência se espalha por toda parte. Deve-se atribuir a eles, em grande parte, esse lento trabalho, obra obscura de ceticismo e desencorajamento que se desenvolve na alma contemporânea.
          É tempo de reagir com vigor contra essas doutrinas funestas e de procurar, fora da órbita oficial e das velhas crenças, novos métodos de ensino que respondam às imperiosas necessidades do momento presente. É preciso preparar os espíritos para as necessidades, os combates da vida atual e das vidas futuras; é preciso, sobretudo, ensinar o ser humano a se conhecer, a desenvolver, em vista de seus objetivos, as forças latentes que nele dormem."
(Léon Denis. O Problema do Ser, do Destino e da Dor, 1905)


*     *     *


"'Que é o bom? − diz Friedrich Nietzsche [em O Anticristo].
− O poder!
Que é o mau?
− A fraqueza!
Que é a felicidade?
− O sentimento de que o poder se engrandece, de que foi superada uma resistência. Comedimento, não; porém mais poder; não a paz antes de tudo, mas a guerra; não a virtude, mas o valor! Pereçam os fracos e os estropiados. E que ainda os ajudemos a desaparecer.
Que pode haver de mais pernicioso do qualquer vício?
− A piedade pelos fracos e desclassificados!'

          Eis aí o que os escritores e filósofos materialistas difundem nas folhas públicas. Têm eles verdadeiramente consciência da responsabilidade que contraem? Consideram a safra que tal sementeira produzirá? Sabem que, vulgarizando essas doutrinas desesperadoras e iníquas, metem na mão dos deserdados a tocha dos incêndios e os instrumentos de morte?
          Ah! Essas doutrinas parecem anódinas, inofensivas aos felizes, aos satisfeitos, aos céticos que gozam, que possuem com o necessário o supérfluo, e com elas justificam todos os seus apetites, desculpam todos os seus vícios; mas os que a sorte fere, os que padecem e sofrem, que uso, que aplicação farão de tais doutrinas?
          O exemplo de Vaillant e de Emílio Henry nos demonstra.
          Vaillant declarou perante o Tribunal do Sena, em janeiro de 1894, que foi na leitura de obras materialistas que hauriu a idéia do seu crime.
          Emílio Henry usava da mesma linguagem: “Estudos científicos me iniciaram no jogo das forças naturais; eu sou materialista e ateu”.
          E quantos outros, depois, afirmaram as mesmas teorias perante seus juízes!
          Ó ciência da matéria! Com as tuas implacáveis afirmações, com as tuas inexoráveis leis do atavismo e da hereditariedade, quando ensinas que a fatalidade e a força regem o mundo, tu aniquilas todo impulso, toda energia moral nos fracos e nos deserdados da existência; fazes penetrar o desespero no lar de inúmeras famílias; instilas o teu veneno até o âmago das sociedades!
          Ó materialistas! Apagastes o nome de Deus no coração do povo: dissestes-lhe que tudo se resumia nos prazeres da Terra; que todos os apetites eram legítimos, que a vida era uma sombra efêmera.
          E o povo acreditou; calaram-se as vozes íntimas que lhe falavam de esperança e de justiça. As almas fecharam-se à fé, para se abrirem às más paixões. O egoísmo expulsou a piedade, o desinteresse, a fraternidade.
          Sem ideal em sua triste vida, sem fé no futuro, sem luz moral, o homem retrogradou ao estado bestial; sentiu o despertar dos ferozes instintos, entregou-se à cobiça, à inveja, aos arrastamentos desordenados. E agora, as feras rugem na sombra, tendo no coração o ódio e a raiva, prontas a despedaçar, a destruir, a amontoar ruínas sobre ruínas.
          A sociedade está afetada de profundos males. O espetáculo das corrupções, do impudor, que em torno de nós se ostentam, a febre das riquezas, o luxo insolente, o frenesi da especulação que, em sua avidez, chega a esgotar, a estancar as fontes naturais da produção, tudo isso enche de tristeza o pensador.
          E, como na ordem das coisas tudo se encadeia, tudo produz os seus frutos, o mal profusamente semeado parece atrair a dor e a tempestade. Esse é o aspecto formidável da situação. Parece que atingimos uma hora sombria da História:
          Desgraçados dos que sufocaram as vozes da consciência, que assassinaram o ideal puro e desinteressado, que ensinaram ao povo que tudo era matéria, e a morte, o nada! Desgraçados dos que não quiseram compreender que todo ser humano tem direito à existência, à luz e, mais ainda, à vida espiritual; que deram o exemplo do egoísmo, do sensualismo e da imoralidade!
          Contra essa sociedade que não oferece ao homem nem amparo, nem consolação, nem apoio moral, uma tempestade furiosa se prepara. Fuzilam, por vezes, raios do seio das multidões; a hora da cólera se avizinha. Porque não é sem perigo que se comprime a alma humana, que se impede a evolução moral do mundo, que se encerra o pensamento no círculo de ferro do ceticismo e do negativismo. Chega um dia em que esse pensamento retrocede violentamente, em que as camadas sociais são abaladas por terríveis convulsões.
          Ergue, porém, a tua fronte, ó homem! e recobra a esperança. Um novo clarão vai descer dos espaços e iluminar o teu caminho. Tudo o que até agora te ensinaram era estéril e incompleto. Os materialistas não perceberam das coisas mais que a aparência e a superfície. Eles não conhecem da vida infinita senão os aspectos inferiores. O sonho deles é um pesadelo."
(Léon Denis. Cristianismo e Espiritismo, 1898)




























































































































































































Argumentos da existência e imortalidade da alma

Leon Denis (1846-1927)


Extraído de:
Depois da Morte, de Leon Denis


A VIDA IMORTAL
          O estudo do Universo nos conduz ao estudo da alma, à investigação do princípio que nos anima e nos dirige os atos.

          Já o dissemos: a inteligência não pode provir da matéria. A Fisiologia nos ensina que as diferentes partes do corpo humano se renovam em um lapso de tempo que não vai além de alguns meses. Sob a ação de duas grandes correntes vitais, produz-se em nós uma troca perpétua de moléculas. Aquelas que desaparecem do organismo são substituídas, uma a uma, por outras, provenientes da alimentação. Desde as substâncias moles do cérebro até as partes mais duras da estrutura óssea, tudo em nosso ser físico está submetido a contínuas mutações. O corpo se dissolve e, numerosas vezes durante a vida, reforma-se. Entretanto, apesar dessas transformações constantes, através das modificações do corpo material, ficamos sempre a mesma pessoa. A matéria do cérebro pode se renovar, mas o pensamento é sempre idêntico a si mesmo, e com ele subsiste a memória, a recordação de um passado de que o corpo atual não participou. Há, pois, em nós, um princípio distinto da matéria, uma força indivisível que persiste e se mantém entre essas perpétuas substituições.
          
          Sabemos que, por si mesma, não pode a matéria se organizar e produzir a vida. Desprovida de unidade, ela se desagrega e divide-se ao infinito. Em nós, ao contrário, todas as faculdades, todas as potências intelectuais e morais grupam-se em uma unidade central que as abraça, liga e esclarece, e esta unidade é a consciência, a personalidade, o Eu, ou, por outra, a alma.

          A alma é o princípio da vida, a causa da sensação; é a força invisível, indissolúvel que rege o nosso organismo e mantém o acordo entre todas as partes do nosso ser. Nada de comum têm as faculdades da alma com a matéria. A inteligência, a razão, o discernimento, a vontade, não poderiam ser confundidos com o sangue das nossas veias, ou com a carne do nosso corpo. O mesmo sucede com a consciência, esse privilégio que temos para medir os nossos atos, para discernir o bem do mal. Essa linguagem íntima, que se dirige a todo homem, ao mais humilde ou ao mais elevado, essa voz cujos murmúrios podem perturbar o estrondo das maiores glórias nada tem de material.

          Correntes contrárias se agitam em nós. Os apetites, os desejos ardentes, chocam-se de encontro à razão e ao sentimento do dever. Ora, se não fôssemos mais do que matéria, não conheceríamos essas lutas, esses combates; e nos entregaríamos, sem mágoa, sem remorsos, às nossas tendências naturais. Mas, ao contrário, a nossa vontade está em conflito freqüente com os nossos instintos. Por meio dela, podemos escapar às influências da matéria, domá-la, transformá-la em instrumento dócil. Não se têm visto homens nascidos nas mais precárias condições vencerem todos os obstáculos, a pobreza, as enfermidades, os defeitos, e chegarem à primeira classe por seus esforços enérgicos e perseverantes? Não se vê a superioridade da alma sobre o corpo se afirmar, de maneira ainda mais positiva, no espetáculo dos grandes sacrifícios e das dedicações históricas? Ninguém ignora como os mártires do dever, da verdade revelada prematuramente, como todos aqueles que, pelo bem da Humanidade, têm sido perseguidos, supliciados, levados ao patíbulo, puderam, no meio das torturas, às portas da morte, dominar a matéria e, em nome de uma grande causa, impor silêncio aos gritos da carne dilacerada!

          Se mais não houvesse em nós que matéria, não veríamos, quando o corpo está mergulhado no sono, o espírito continuar a viver e agir sem auxílio algum dos nossos cinco sentidos, e assim mostrar que uma atividade incessante é a condição própria da sua natureza. A lucidez magnética, a visão à distância sem o socorro dos olhos, a previsão de fatos, a penetração do pensamento são outras tantas provas evidentes da existência da alma.

          Assim, pois, fraco ou poderoso, ignorante ou esclarecido, somos um espírito; regemos este corpo que mais não é, sob nossa direção, do que um servidor, um simples instrumento. Esse espírito que somos é livre e perfectível, por conseguinte, responsável. Pode, à vontade, melhorar-se, transformar-se e inclinar-se para o bem.

          Confuso em uns, luminoso em outros, um ideal esclarece o caminho. Quanto mais elevado é esse ideal, tanto mais úteis e gloriosas são as obras que inspira. Feliz a alma que, em sua marcha, é sustentada por um nobre entusiasmo: amor da Verdade e da Justiça, amor ao próximo e à Humanidade! Sua ascensão será rápida, sua passagem por este mundo deixará traços profundos, sulcos de onde colherá uma messe bendita.

*

Estabelecida a existência da alma, o problema da imortalidade se impõe desde logo. É essa uma questão da maior importância, porque a imortalidade é a única sanção que se oferece à lei moral, a única concepção que satisfaz as nossas idéias de Justiça e responde às mais altas esperanças da Humanidade.

Se como entidade espiritual nos mantemos e persistimos através do perpétuo renovamento das moléculas e transformações do nosso corpo material, a desassociação e o desaparecimento final também não poderiam nos atingir em nossa existência.

Vimos que coisa alguma se aniquila no Universo. Quando a Química nos ensina que nenhum átomo se perde, quando a Física nos demonstra que nenhuma força se dissipa, como acreditar que esta unidade prodigiosa em que se resumem todas as potências intelectuais, que este Eu consciente, no qual a vida se desprende das cadeias da fatalidade, possa se dissolver e se aniquilar? Não só a lógica e a moral, mas também os próprios fatos − como estabeleceremos adiante − fatos de ordem sensível, simultaneamente fisiológicos e psíquicos, tudo concorre, mostrando a persistência do ser consciente depois da morte, para nos provar que além do túmulo a alma se encontra como ela própria se fez por seus atos e trabalhos, no curso da existência terrestre.

Se a morte fosse a última palavra de todas as coisas, se os nossos destinos se limitassem a esta vida fugitiva, teríamos aspirações para um estado melhor, de que nada na Terra, nada do que é matéria pode dar-nos a ideia? Teríamos essa sede de conhecer, de saber, que coisa alguma pode saciar? Se tudo cessasse no túmulo, por que essas necessidades, esses sonhos, essas tendências inexplicáveis? Esse grito poderoso do ser humano, que retumba através dos séculos, essas esperanças infinitas, esses impulsos irresistíveis para o progresso e para a luz mais não seriam , pois, que atributos de uma sombra passageira, de uma agregação de moléculas apenas formadas e logo esvaídas? Que será então a vida terrestre, tão curta que, mesmo em sua maior duração, não nos permite atingir os limites da Ciência; tão cheia de impotência, de amargor, de desilusão que nela nada nos satisfaz inteiramente; onde, depois de acreditar termos conseguido o objeto de nossos desejos insaciáveis, nos deixamos arrastar para um alvo, sempre cada vez mais longínquo, mais inacessível? A persistência que temos em perseguir, apesar das decepções, um ideal que não é deste mundo, uma felicidade que nos foge sempre, é uma indicação firme de que há mais alguma coisa além da vida presente. A Natureza não poderia dar ao ser aspirações, esperanças, irrealizáveis. As necessidades infinitas da alma reclamam forçosamente uma vida sem limites.

A felicidade não é deste mundo

Santo Tomás de Aquino (1225-1274)

Extraído de:
Suma Teológica, part. II, q. 5, a. 3, de Tomás de Aquino


PODE ALGUÉM SER FELIZ NESTA VIDA?

Objeções pelas quais parece que se pode ter a felicidade nesta vida.

1. Diz-se em Salmos 118,1: “Felizes os de conduta irrepreensível, porque caminham na lei do Senhor”. Ora, isto sucede nesta vida. Logo, alguém pode ser feliz nesta vida.

2. Ademais, a participação imperfeita do sumo bem não elimina a razão da felicidade; do contrário, um não seria mais feliz que outro. Ora, nesta vida os homens podem participar do sumo bem, conhecendo e amando a Deus, ainda que imperfeitamente. Logo, o homem pode ser feliz nesta vida.

3. Ademais, o que afirmam muitos não pode ser de todo falso, pois parece que é natural o que há em muitos, e a natureza não falha de todo. Ora, muitos encontram a felicidade nesta vida, como se demonstra pelo que diz Salmos 143,15: “Chamaram feliz ao povo que tem isto”, quer dizer, os bens da vida presente. Logo, alguém pode ser feliz nesta vida.

Ao contrário, está o que se diz em 14,1: “O homem nascido de mulher vive pouco tempo e se enche de misérias”. Ora, a felicidade exclui a miséria. Logo, nesta vida não se pode ser feliz.

Solução. Há que dizer: Nesta vida se pode ter alguma participação da felicidade, mas não se pode ter a felicidade perfeita e verdadeira. E isto se pode compreender de dois modos. Em primeiro lugar, pela própria razão comum da felicidade, pois a felicidade exclui todo mal e satisfaz todo desejo, por ser o bem perfeito e suficiente. Mas a vida presente está submetida a muitos males que não se podem evitar: tanto a ignorância por parte do intelecto, como o desejo desordenado por parte do apetite, e múltiplas penalidades por parte do corpo, que Agostinho enumera minuciosamente em Cidade de Deus, XIX. Igualmente, tampouco o desejo de bem se pode saciar nesta vida, pois o homem deseja naturalmente a permanência do bem que tem. Mas os bens da vida presente são transitórios, posto que a vida mesma passa e a desejamos naturalmente, queremos que permaneça sem interrupção, porque o homem repugna naturalmente a morte. Por conseguinte, é impossível ter nesta vida a verdadeira felicidade.
            Em segundo lugar, se se considera aquilo no qual consiste especialmente a felicidade, quer dizer, a visão da essência divina, que não pode ocorrer ao homem nesta vida, como se demonstrou na primeira parte (q. 12, a. 2). Segundo isto, fica claro que ninguém pode conseguir a felicidade verdadeira e perfeita nesta vida.

Resposta às objeções: 1. À primeira, há que dizer: Chamam-se alguns felizes nesta vida, ou pela esperança de conseguir a felicidade na vida futura, segundo Romanos 8,24: “Em esperança temos sido salvos”; ou por alguma participação da felicidade, segundo alguma fruição do sumo bem.

2. À segunda, há que dizer: A participação da felicidade pode ser imperfeita de dois modos. Um, por parte do objeto mesmo da felicidade, o que certamente não se vê segundo sua essência. E esta imperfeição elimina a razão de verdadeira felicidade. De outro modo, pode ser imperfeita por parte do mesmo que participa, que certamente chega a alcançar o objeto mesmo da felicidade, que dizer, a Deus, mas imperfeitamente, em comparação com o modo como Deus desfruta de si mesmo. E esta imperfeição não elimina a verdadeira razão de felicidade, porque, ao ser a felicidade uma operação, como se disse (q. 3, a. 2), considera-se a verdadeira razão de felicidade a partir do objeto, que dá a espécie ao ato, e não a partir do sujeito.

3. À terceira, há que dizer: Os homens consideram que nesta vida há alguma felicidade por alguma semelhança com a felicidade verdadeira. E assim não se equivocam de todo em sua apreciação.

Dez provas da existência de Deus, por Tomás Antônio Gonzaga

Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810)

Extraído e adaptado de:
Tratado de Direito Natural, de Tomás Antônio Gonzaga

DA EXISTÊNCIA DE DEUS
  Ainda que não haja uma só causa, de que não se deduza a existência de Deus, Epicuro, Espinoza e outros ímpios que se compreendem no genérico nome de “ateus”, negaram detestavelmente esta incontrovertível verdade. Este erro é o mais nocivo à sociedade dos homens, pois os deixa despidos de qualquer obrigação, à semelhança dos brutos, a quem fez a Natureza destituídos do discurso e da razão. Que coisa mais necessária para a honestidade da vida que o reconhecermos que há de haver um juiz a quem não engana o oculto, as ações torpes ofendem e as virtudes agradam? [1] Seria o mundo um abismo de confusões e desordens, se, tirado o temor do castigo, só servisse de regra às ações do homem a sua própria vontade. Como, pois, a existência de Deus é a base principal de todo o Direito, será justo que a mostremos com razões físicas, metafísicas e morais.

  1. Uma demonstração física da existência de Deus é a necessidade que temos de um Ente, em que tenham princípio todas as coisas que vemos, pois, como não podiam dar a si próprias o ser, havemos necessariamente confessar que há um princípio incriado, causa da existência de todas. Esta verdade se faz evidente por meio da seguinte reflexão. Ou na coleção geral das causas de que tudo procede se dá uma causa incriada, ou todas são criadas. Se se dá uma causa incriada, há Deus; se não há causa incriada, então ou todas são criadas por si mesmas ou por outra que exista fora de semelhante coleção. Por si próprias não pode ser, pois ninguém pode ser causa da sua mesma existência; por outra, menos, pois fora da coleção de todas não a devemos admitir. Logo, na coleção de todas há uma causa incriada, de quem as mais recebem o primeiro ser.

  2. A segunda demonstração não é menos eficiente. Ou nós havemos admitir que todos os entes que existem são contingente, ou havemos confessar que há um princípio necessário, causa da existência dos mais. Se admitimos um princípio necessário, confessamos a Deus; se dizemos que todos são contingentes, então havemos conceder que eles puderam em algum tempo não existir. E que absurdo se segue de semelhante conseqüência! Nada menos se segue do que pormos todos os entes que atualmente existem impossíveis de existirem. Façamos palpável esta verdade.

  3. Concedido que todos os entes que existem são contingentes, havemos de confessar que eles em algum tempo não existiram, pois que, se dissermos que não tiveram princípio, passávamos a fazê-los, de contingente, necessários [2]. Isto é uma verdade que qualquer alcança. Como poderemos dizer que um ente pode existir ou não existir, que é a natureza do contingente [3], sem que o consideremos em algum tempo não existindo? Logo, se houve tempo em que eles não existiram, é bem certo que nem hoje poderiam existir; pois que nem se poderiam tirar a si próprios do nada, nem podemos fazer a todos necessários, estando nós vendo o princípio e o fim de muitos. Eles, na verdade, existem; logo, havemos admitir um princípio necessário, causa da sua existência.

  4. Como toda a força das presentes demonstrações se firma no princípio de que “ninguém pode ser causa da sua própria existência”, não será estranho que mostremos a evidência de semelhante regra. E que mais é necessário que refletirmos nas qualidades do producente e do produzido? Todo o producente há de ser anterior ao produzido em tempo e em natureza; da mesma forma, todo o produzido deve ser posterior ao producente na mesma natureza e tempo; logo, nenhum ente pode ser causa da sua própria existência; porque repugna que possa ser, como producente, anterior a si mesmo como produzido; e, como produzido, posterior a si mesmo como producente. Além de que, o ente físico só pode ter princípio em outro ente que fisicamente exista. Daí vem que os entes físicos não podem receber de si próprios o primeiro ser; pois, antes que o recebessem, ainda não eram entes que o pudessem dar [4].

  5. Epicuro, imaginando que a matéria não se podia tirar do nada, a fez eterna, e a formação do mundo procedia de um acaso. Esta doutrina é, na verdade, indigna de um animal dotado de razão. Se a matéria fosse eterna, teria as propriedades de Deus; e como as poderemos dar a um ente corpóreo? Este, por sua natureza, é composto, mudável e corruptível [5], propriedades [6] que totalmente repugnam à essência perfeitíssima de Deus. Além do que, se o acaso não é ente algum que tenha ser, como poderia receber dele o mundo sua formação?

  6. Para conhecermos mais o quanto é sem fundamento esta opinião de Epicuro, não é necessário mais do que fazermos a seguinte reflexão: se apenas vemos um relógio, ou outra máquina, não a podemos atribuir ao acaso, mas logo conhecemos que houve um artífice que a fabricou; como poderemos olhar para a máquina do mundo, tão superior a todas, sem que vejamos no conhecimento que havia haver um autor sumamente sábio e sumamente poderoso que a fizesse? [7] Este argumento não só se pode tirar da perfeição com que estão dispostas as partes desta grande máquina, mas também do movimento delas. É porventura o movimento alguma coisa essencial da matéria? Certo que não, pois nós a podemos conceber sem ele. Ora, se um corpo, a não ser animado de um princípio espiritual, não se pode mover sem que haja uma causa externa que o agite, como se poderão mover o Sol, a Lua e todos os mais planetas, sem concedermos um princípio externo, causa do movimento de todos? [8]

  7. Da história, manifestamente consta que o mundo foi criado no tempo; e, posto que a história digna de crédito não se estenda além de Nino [9], contudo, nós havemos de julgar que esta história e notícia se conservou sempre pura por tradição desde o primeiro homem. Os princípios das cidades e dos impérios, as origens das ciências, os primeiros descobrimentos das artes, enfim, a própria multiplicação dos homens não nos estão dando um fiel testemunho desta verdade? Só duvidará dela quem não refletir em que o aumento de aumento de uma coisa é uma prova evidente do seu princípio; logo, se o gênero humano foi criado no tempo, é certo que ele teve autor.

  8. Aquela persuasão, que tiveram sempre, e que têm todos os povos em matéria de suma e gravíssima importância, se deve ter por verdade; e quem negará que em todos os tempos, entre todos os povos, sempre foi constante a persuasão que homens tiveram da existência de Deus? Dos antigos nos são testemunhas Sócrates, Sexto Empírico, Sêneca, Cícero e outros; das nações que existem, os tártaros, os cafres, os gentios da América setentrional e meridional e todas as nações mais bárbaras que se têm descoberto, não duvidam desta verdade. Logo, se em todos os tempos foi constante a persuasão que os homens tiveram da existência de Deus, não podemos deixar de confessar que há uma causa universal que assim o mostra, pois que a devemos conceder todas as vezes que os homens convêm geralmente em uma só coisa [10]. E qual pode ser a causa universal, que assim o mostre, a não ser uma revelação de Deus, conservada por uma sucessiva tradição, ou a voz da Natureza, que não engana? [11]

  9. Outra prova tem qualquer pessoa em si mesma: quem haverá que nos perigos não recorra naturalmente a Deus? Os mesmos que se confessavam ateus, e têm assim praticado em semelhantes ocasiões, se algum nega a Deus, não é porque a razão assim lho dite; mas sim por vício da vontade, para que possa mais livremente executar os seus péssimos apetites. Dado, porém, que ainda haja homens tão bárbaros que não o confessem, poderemos, contudo, dizer que o seu conhecimento não provém a todos por meio da razão? De nenhuma forma: quem negará que alimentar os filhos é um direito, que ensina a Natureza até aos brutos, posto que haja pais que os desprezem para melhor gozarem do depravado uso das suas liberdades? Assim, pois, nos bastará também que em todos os tempos, e entre todos os povos, sempre fosse constante e confessada a existência de Deus pelos mais sábios, pelos mais pios, e enfim pela torrente de todos, para que não duvidemos desta verdade.

  10. É bem patente a todos que nós temos um princípio espiritual, que nos anima, pois conhecemos infinitas coisas; e este conhecimento não pode provir da matéria, como julgaram alguns filósofos antigos [12]; porque, se as afeições de um corpo não podem provir senão da diversa configuração e movimento das partes, não podemos conceber movimento e configuração alguma de que possa resultar a propriedade de conhecer [13]; logo, se temos um princípio espiritual que nos anima, bem certo fica que este não há de proceder senão de outro princípio espiritual. Nós havemos de dizer que este procede de um e aquele de outro? Não, pois repugna à razão admitirmos um processo infinito [14]; não havemos também dizer que estes se deram a si próprios o ser, pois que igualmente implica, como já mostramos; logo, havemos confessar que tem de haver um princípio espiritual necessário, causa de todos os entes espirituais voluntários.

Notas:
[1] D. AMBRÓSIO, De Offic., lib. I, cap. 26; De Nat. Dei, cap. 8.

[2] HEIN., De Offic., lib. I, cap. 4, § 2.

[3] HEIN., Elem. Mor., Part. I, cap. 3, Sect. 2, § 76.

[4] GRÓCIO, De Veritat. Relig. Christ., lib. 1, § 2.

[5] HEIN., Philos. Mor.. Part. I, cap. 2, Sect. 2, § 45.

[6] Que a criação não se podia fazer do nada, seguiu também Platão; porque admitiu que havia dois princípios eternos: um, Deus; outro, a matéria, independentes um do outro. Os estóicos também admitiram os mesmos princípios. Eles julgaram que Deus era um fogo artificial; e que, agitando a matéria conforme as leis do Fado, formara os Astros em que infundiu partes do fogo; e que estes, ficando por isso Deuses, formaram depois o ar, o fogo, etc. (MOSHEMIUS, Ad Luduvorth. Syst., cap. 4, § 25). Aristóteles também seguiu o sistema dualístico e pôs o primeiro móvel ligado ao primeiro céu, dizendo que nada mais podia fazer do que tinha feito, em dar o movimento à matéria (VERN. Appar. ad Philos. et Theol., P. I., lib. 1, p. 62).

[7] CÍCERO, De Nat. Deor., lib. 2, cap. 5; COCCEO. Ad Grot., in Prolog., § II; DERHAMUS, Theol. Phis.; NIAVENT., De Exist. et Atribut Dei.

[8] COCCEO, Ad Grot. in Prolog., § II.

[9] As histórias assíricas, e outras, que são alguma coisa anteriores a Nino, são totalmente indignas de crédito, pelas muitas fábulas de que se convencem estar cheias.

[10] COCCEO, Ad. Grot., Disert. Proem. XII, lib. 1, cap. 4, § 58.

[11] JAQUILÁCIO, De Exist. Dei; GENUENSE, Element. Metaphys., tomo 3, in Apend. Ad., cap. I.

[12] Os ginosofistas disseram que as nossas almas eram materiais, pois julgaram que Deus era um fogo; e que estas não eram outra coisa, senão uma porção dele (VERN., Appar. ad Phil., part. I, lib. I, p. 20). Os estóicos julgaram o mesmo, só com a diferença que os ginosofistas fizeram a Deus um fogo intelectual, e estes, artificial (LAÉRCIO, lib. 7, Sect. 55, SÊNECA, Epíst. 106 e 113; LÍPSIO, De Philos. Stoic., lib. 2).

[13] HEIN., Philos. Mor., Part. II, cap. 2, Sect. II.

[14] HEIN., De Offic., lib. 1, cap. 4, § 2.

Crítica ao sistema de trocas

Pietro Ubaldi (1886-1972)

Extraído e adaptado de: 
A Grande Síntese, de Pietro Ubaldi

O PROBLEMA ECONÔMICO
          A ciência econômica acredita se justificar, como se partisse de um princípio de justiça original, afirmando, com sua premissa hedonística, a presença de um tipo abstrato de homo economicus, como que se pudesse isolar, na realidade, um aspecto; como se cada fenômeno não estivesse vinculado a todos os fenômenos, na lei universal. As ciências sociais se baseiam facilmente em qualquer mentira piedosa. Mas, diga-se a verdade: diga-se que quase sempre o homem é realmente – não como hipótese econômica – um perfeito hedonista; no campo dos negócios, limita-se a aplicar sua natureza egoísta. Que o do ut des [1] não é um equilíbrio de direitos, mas um medir as forças para estrangular-se mutuamente. Declare-se a impotência da maioria para compreender uma aproximação, ainda que mínima, do amor evangélico. Diga-se que o homem é uma fera envernizada de civilização e, então, ter-se-á as bases reais do fenômeno econômico. Reconheça-se: a ciência que o estuda é a codificação do egoísmo, isto é, do instinto mais desagregador do complexo social.

  A premissa hedonística é princípio anticolaboracionista por excelência. É um princípio de dissolução, que o edifício econômico carrega consigo, como insanável vício de origem, reaparecendo sempre nos momentos de crise. Egoísmo de capital, egoísmo de trabalho, egoísmo de produtor, egoísmo de consumidor; egoísmo individual, de classe, de nação (sistema protecionista); coalizão de egoísmos, organização de egoísmos, sempre egoísmo! As mercadorias, a riqueza, o trabalho, precipitam-se atraídos (no regime livre cambista) ou subjugados por essa grande força, mesmo que seja ilógica e contraste com as supremas exigências das ascensões humanas. No entanto, esta é a meta inderrogável, ética elevada, à qual todas as funções sociais têm de se subordinar para o objetivo único da evolução. Ao contrário, egoísmo é luta, atrito, dispersão, germe de destruição. É o ponto fraco do mecanismo, um fardo enorme que tem de ser arrastado, e o torna imperfeito, ameaça-lhe a jornada, como cego que avança entre choques e reações. Para quantas dores haveria fácil remédio, se cada um amasse o próprio semelhante como a si mesmo!

          Se o fenômeno econômico é a expressão da lei do menor esforço, assume sempre a forma de coação. O equilíbrio entre oferta e procura é resultante de uma luta, o oferecimento de uma mercadoria é apenas a exigência de um preço. Tudo se move pela própria necessidade, não pela consciência das necessidades recíprocas. Um sistema carregado de atritos, um equilíbrio forçado entre forças antagônicas, tensas para se eliminarem, sobrecarrega-se pelo peso do egoísmo. Não era possível deixar de se chocar, mesmo neste campo, numa manifestação da lei universal, e não encontrar equilíbrios. Mas, diante do princípio do ut des, da procura e da oferta, o egoísmo caminha triunfante, seguindo a lei do menor esforço, para equilíbrios móveis, mas matematicamente exatos, que se podem calcular, mas que conservam sempre a marca da premissa original: o egoísmo demolidor. O instinto hedonista, em sua inconsciência de todos os outros valores sociais, caminha calcando todos eles, contanto que se realize a si mesmo. Força primitiva, brutal que, se em seu nível é impulso de criação, também constitui princípio de destruição, pelo qual se sofrem infinitas crises e reveses.

          Mas a evolução, fenômeno universal, tinha que funcionar também neste campo, com a gradual eliminação do princípio hedonístico, por cerceamento, por limitações e elevações progressivas, até saber compreender os interesses de ordem geral no próprio âmbito. Encontramos por toda a parte o mesmo processo ascensional, pelo qual a força tende à justiça, o egoísmo ao altruísmo, a guerra à paz, o mal ao bem. Na evolução, não se pode isolar um campo do outro. Todos os fenômenos sociais, porém, devem ser concebidos e fundidos numa ética superior. O conceito hedonístico, colocado como base das ciências econômicas, é filho do agnosticismo de outros tempos, já agora superados. Se, num primeiro momento, o perfeito equilíbrio da balança – do ut des – é o máximo de justiça que a psicologia das permutas pode conter, nos momentos superiores, o progresso impõe a introdução do fator moral no fenômeno econômico em proporção cada vez mais ampla. Como na evolução do egoísmo, o próprio cálculo utilitário os levará a isso, pois nele se exprime a lei do menor esforço. Sendo a luta cheia de atritos que implicam enorme dispersão de energia, é vantagem suprimi-los.

          No atual mundo, raramente a riqueza segue a estrada do bem. Não é meio para conquistas mais altas, mas fim para gozos que premiam as aptidões mais rapaces e antissociais. Atenção, porém, porque essa psicologia é supremamente demolidora, mesmo no campo do utilitarismo individual (inconsciência coletiva), o oposto do colaboracionismo (consciência coletiva). Quando um fenômeno nasce envenenado por impulsos negativos, estes, indestrutíveis como todas as forças, acompanham-no e o corroem até sua destruição. Quando uma ação está infeccionada no momento decisivo do nascimento pelo germe da desonestidade, ela se arrastará corroída por dentro, como um enfermo, até que a desagregação interna a resolva com a morte. Eis porque o mundo econômico está cheio de crises inevitáveis, sem remédio, e porque elas surgem sobre esses equilíbrios instáveis e fictícios. A solução não se encontra na criação de um rebanho de irresponsáveis, de mendigos, sustentados pelo Estado, mas na criação de uma sociedade de responsáveis, que saiba manejar conscientemente a grande força econômica. Não pressuponho uma mutilação, mas um aumento de consciência, de poder, de liberdade, de confiança, de responsabilidade. O homem não deve se anular, mas manejar as forças da vida para aprender; deve correr livremente o risco de errar para que, ao sofrer as consequências, emende-se; deve bater a cabeça para aprender a não batê-la mais. À força de crises, de derrocadas, de desastres financeiros, aprenderá que o negócio mais estável, mais sábio, mais lucrativo é a honestidade; que a posição mais utilitária é a que leva em conta o interesse de todos, a que se funde e não se isola no organismo coletivo econômico. Estas são as leis da vida e não constituem utopias.

          Na direção desta renovação, o órgão máximo só pode ser a consciência coletiva: o Estado. O fenômeno econômico compete à autoridade central do Estado, como personificação integral da ética humana, das inoculações cada vez mais enérgicas de fator moral, constrições e correções que purificam a atividade econômica e a riqueza, e as canalizam para objetivos mais elevados. Compete ao Estado intervir e corrigir, introduzindo um mínimo ético cada vez mais alto, no fenômeno econômico, dirigindo de dentro e de fora o árduo equilíbrio das permutas para um regime de colaboração, que não é apenas compensação, mas compressão de egoísmos; não apenas coordenação, mas fusão num organismo econômico universal. Uma ciência econômica diferente da atual que suporta a Lei, mas consciente dela, não deve surgir de bases hedonísticas, mas colaboracionistas, porque, numa sociedade mais adiantada, a fase ética e utilitária é cooperação. Esta é a revolução econômica fundamental que, neste campo, exprime a atual maturação biológica. Infelizmente, os sistemas que hodiernamente dominam no mundo levam a uma seleção às avessas, a do mais astuto e desonesto, enquanto o honesto é eliminado. A sociedade não exalta o homem que dá, porque esse fica pobre, mas o homem que apanha e acumula, porque esse fica rico. No entanto, o primeiro dá aos outros o que é seu, o segundo tira dos outros para si. Este só poderá se justificar realizando sua função de conservar e fecundar a riqueza com seu trabalho.

          No mundo, os melhores estão escondidos, porque são sensíveis, modestos, endereçados a outras metas, não têm as qualidades agressivas que condicionam o êxito. Ao invés, os ambiciosos e ávidos sabem pisotear tudo sem escrúpulos para consegui-lo. O que brilha no mundo raramente coincide com os valores intrínsecos; o triunfo econômico muito rápido só pode significar ausência de honestidade. Ainda se movem no nível da força econômica (princípio hedonístico) e não ainda no da justiça econômica (colaboracionismo). Qualquer crise no regime hedonístico tem de descer até o fundo. Só pode parar por saturação, só pode se reerguer por uma reação natural do próprio fenômeno, depois de haver sido esgotado o impulso, pois não possui as capacidades compensativas do regime colaboracionista.

          Não há proporção entre trabalho e lucro. O furto é autorizado na especulação; parasitismos são inevitáveis como consequência direta da premissa hedonística. O princípio do do ut des gera luta para tirar o máximo e dar o mínimo. Isto não apenas é o precedente da luta, mas implica toda a psicologia do furto, macula todo o mundo econômico, fazendo nele brilhar o egoísmo em lugar da justiça. Se o ponto de partida é a motivação hedonista, a vontade estará toda voltada para a exclusiva vantagem individual, à qual só se renuncia quando constrangido pela vontade alheia, que está voltada para outra vantagem individual. A oferta é apenas um pedido de dinheiro, oculto totalmente pela mentira; não visa o interesse do consumidor, mas ao egoísmo do produtor. Por isso, o edifício econômico é torturado e desgastado por esse constante atrito de exploração, que arrasa segurança e confiança, que são as bases desse edifício. Por isso, o mundo econômico não é um organismo de justiça, mas um campo de competições sem piedade.

          Não existe proporção entre valor e preço. Este, o mais das vezes, não corresponde ao custo da produção, mas à maior ou menor capacidade que apresenta de suportar o peso da exploração. Verdade, porém, que o poder esfaimado da procura gera imediatamente a superprodução e se equilibra com a oferta, mas esse equilíbrio espontâneo é com frequência ultrapassado pelo desequilíbrio originário do egoísmo, sempre voltado para reassumir a vantagem logo que possa. Além disso, não há quem não veja que o aumento de preço, pelo simples fato de que a procura é intensa e a oferta escassa, esteja distante da justiça, especialmente quando o consumidor se acha em condição de necessidade e a penúria seja causada pela açambarcação.

          Os bens na Terra não buscam o caminho da necessidade. A riqueza é atraída pela riqueza e foge da pobreza. Ao invés de constituir uma ajuda, é frequentemente um mal na vida social. A psicologia hedonista carreia o dinheiro para onde não serve, afasta-o de onde poderia aliviar uma dor, proteger uma vida. Todos fogem do fraco e do vencido. Logo que se manifesta uma fraqueza, tudo ocorre para agravá-la, empurrando-a para a beira do precipício. A necessidade do próprio semelhante é um não-valor econômico, enquanto é valor a confiança que inspira uma sólida riqueza. Por isso, ela dificilmente executa a função que deveria ser para ela a primordial, ou seja, um meio de vida e de melhoria. Por vezes, transforma-se até em meio de opressão que absorve e destrói, em lugar de fecundar e soerguer a vida. Essa hipertrofia do egoísmo constitui o mal que onera o mundo econômico e o ameaça. É ilógica e prejudicial essa canalização da riqueza para a riqueza, ao invés de sê-lo para a pobreza; essa atração levada a agigantar desigualdades que são a base dos desequilíbrios sociais e morais, essa tendência à concentração, enquanto a saúde está na descentralização.

          Não existe acordo entre capital e trabalho. Esses dois extremos do campo econômico deveriam estender-se as mãos como irmãos. Torna-se inútil a determinação de leis e sistemas, pois o capital está poluído em suas origens pela desonestidade, que o tornará infecundo. Cada remédio e cada controle ficam na superfície, pois na alma não existe a consciência da função social dessa destilação do produto do trabalho, que é o capital, e se torna um meio de opressão. Para superar os conflitos que oneram a humanidade neste campo, é mister também superar a inconsciência egoísta, elevando-a até à consciência colaboracionista. Os dois pólos, capital e trabalho – como todos os contrários – são complementares, feitos para se completar, porque cada um deles, sozinho, não se sustenta. São feitos para se unir e fecundar-se mutuamente, numa corrente de permutas contínuas, que devem ser, também, amplexos de espíritos. Somente na compreensão das duas forças podem praticamente se combinar os impulsos da balança econômica. O único fato substancial que justifica as lutas é que elas constituem um meio para chegar à compreensão, já que, também neste campo, como em qualquer outro, a evolução é irrefreável.

Notas:
[1] Princípio da troca: "dou se deres".